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Carmen Geleilate: 103 Anos

Hoje, 24 de janeiro de 2025, Carmen Geleilate completaria 103 anos. Carminha, como era carinhosamente conhecida, foi uma figura importante na região, dedicando sua vida ao cuidado da comunidade rural de Aquidauana e realizando mais de mil partos como enfermeira obstétrica, sempre com amor e dedicação. Sua contribuição foi além da saúde, promovendo educação e empoderamento para as mulheres da região.

Além de seu impacto na saúde, Carmen foi uma figura central na vida social e cultural de Aquidauana, enriquecendo a comunidade com suas habilidades artísticas e culinárias. Sua casa era um ponto de encontro e inspiração, refletindo seu espírito generoso e resiliente. Hoje, celebramos sua memória e o legado duradouro que deixou em nossa cidade.

Confira o texto da antropóloga Yara Penteado, sua filha, em homenagem a Carmen por ocasião de seu centenário.

 

Centenário não é todo dia

Yara Penteado

Antropologa

Eita, Carminha, chegou aos 100! De rebenque erguido, como você fala. Inteirona. Até porque nunca deixou nada sem ser completo e bem feito. Lucidez invejável, não só se reporta ao passado, em minúcias de nomes e datas, como tem o presente sempre ao alcance, atenta e consciente de sua história passada e dos momentos atuais do brasil. Acompanha os noticiários, entre alguns aplausos e muita indignação. É uma cidadã.

Com algumas limitações na mobilidade, nem por isso deixou de participar, de andador, pela Europa, há 4 anos. Já era a quarta vez que ia. Por onde passava, chamava a atenção dos turistas e locais, pela beleza de sua jovialidade e a elegância, completada com seu icônico chapéu.

Na Foto: Yara Penteado e Carmem Geleilate. Arquivo pessoal Yara Penteado.

Sempre fala que vai escrever um livro de memórias e tem nome para eleaz: “histórias para contar, rugas no rosto e lembranças no coração”. Título romântico, como é seu perfil.

Estou escrevendo por ela, com entrevistas saborosas e cheias de detalhes e circunstâncias. Não é porque faz 100 anos que digo que dona Carmen Geleilate é uma mulher de fibra. Nascida na fazenda são José do Desterro, entre Dourados e Ponta Porã, do seu avõ Ponciano de Mattos, aos 24 de janeiro de 1922, foi registrada em Dourados. Seu avõ foi homem ilustre. Em são Luiz Gonzaga (rs) foi estancieiro abastado, chefe político e prefeito da cidade. Os ventos revolucionários o obrigaram a picar a mula para os pagos de mato grosso, onde adquiriu fazenda e foi o primeiro prefeito de ponta porã, como interventor. Foi, ainda, prefeito eleito. Sua memória é lembrada em estátua em rua principal.

Muitas luas se passaram. A fazenda, a doença, a morte e a decadência sobrevinda.

A família migrou para dourados, tendo arrendado a fazenda que, por motivos vários, vieram a perder.

Nesse quadro minguado, Carminha, aos 16 anos, veio para Aquidauana, estudar interna no colégio das freiras – escola Parochial Nossa Senhora do Perpétuo Socorro – das irmãs vicentinas. Era opção mais barata, após rápida passagem insustentável pelo Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, em Campo Grande. Dessa época, traz belas recordações e conta que era muito feliz no internato. Era costume das famílias locais, levarem as internas de fora, para “passar o dia” e era muito paparicada. Lembra bem da acolhida de dona Celina Kratz e de dona Estanislina Costa, que a disputavam. Também sempre acompanhava Irmã Mauricia, de ar aristocrático, nas visitas que fazia às famílias importantes. Lembra da irmã São João, carinhosa, rodeada dos seus pintainhos, como chamava as internas.

Sua mãe, Izabel Ignacia de Mattos Brum (pelo antigo casamento com Brasílio Brum, pai de seus 7 filhos) também veio para Aquidauana, para a antiga margem esquerda. Esses filhos referidos, Adhayla, Iva, Dorothy, Carmen, Brasilíndio (sinhô, depois maneco), Ursulina e Ponciano (nhozinho), na época, já tinham tomado seus rumos e hoje só Carmen sobrevive.

Saída do internato, Carmen se casou, então aos 20 anos, com filho de fazendeiro – Zózimo Almenda Penteado, o Zito – e com ele foi morar na fazenda. Poucos dias de casado, a morte, com pouca doença. Na barriga de Carmen, ficou sua herança, nascida nove meses depois, eu.

Ficou na fazenda com a sogra e os cunhados. Com quem se dava muito bem. Em seguida, veio para Aquidauana, na pensão de Etelvina Moreira, que virou sua comadre. Ela e Mena, Filomena mendes, eram suas melhores amigas e seus anjos protetores.

Começou namoro forte com Jamil Geleilate, filho de comerciantes árabes e com ele foi morar. Amigou, como se dizia. A sociedade local, de certa forma a rejeitava, porém sem maiores hostilidades. Havia bastante preconceito, mas nunca se sentiu discriminada ostensivamente.

Entre tapas e beijos, foi levando a vida, dura e com muito trabalho. Eram idas e vindas nos laços frouxos, apenas amarrados com o amor.

Por volta de 1949 largou dele e foi para Campo Grande. Morou um certo tempo com sua prima Oriales Ramos Brum, a Nena, e depois foi morar com seu pai, no bairro Amambaí.

Em 1950, mais um curso de enfermagem obstétrica, na maternidade Cãndido Mariano. Inscreveu-se e foi aceita. As aulas eram à noite e havia possibilidade de estágio paralelo. Então, era uma jornada de 12 horas dedicadas integralmente à nova empreitada. Eram plantões duros, os curriculares e os voluntários. Carmen sempre se inscrevia nestes também. As escalas eram rigorosas e acompanhadas por enfermeiras plantonistas, que faziam rodízios pelos hospitais da cidade. A presidente da instituição, era dona Athenice Paglieraqui de Sá e a diretora técnica, dona Antonia Pinto – dona Tunica, carinhosamente chamada. De família de corumbá, era casada com um militar. Ambas, extremamente dedicadas e competentes em seus ofícios.

Os professores eram todos grandes nomes da medicona local : doutores Fernando Corrêa da Costa, Wilson Fadul, Cícero de Castro Faria, Roger Buainain, Nelson Buainain, Celso Yamaki, Sílvio de Andrade e Arthur de Vasconcellos. As poucas enfermeiras que existiam eram muito ocupadas e de fora. Mais uma razão da importância do curso : formação e qualificação de mão de obra profissional. Muitas começaram e desistiram. Era preciso tempo e dedicação. Ficaram umas 10.
As aulas teóricas eram à noite, incluindo anatomia, obstetrícia como foco, incluindo cuidados do puerpério materno-infantil, até a assepsia local e ambiental, ao lado de tudo o mais que se pudesse exigir para a formação técnica e profissional de uma boa enfermeira parteira, objetivo mais amplo do curso. Os médicos desenhavam no quadro negro detalhes de anatomia e fisiologia, hoje amplamente disponíveis pelos recursos digitais modernos.

E lá se vão 60 anos dessa turma formada, em 1951.

Ainda em Campo Grande, Carmen continuou a trabalhar na maternidade, desta feita, como profissional.

Em 1952, Jamil, o eterno namorido de idas e vindas, voltou resolvido e se casaram no cartório do registro civil e na igreja de Santo Antônio, no dia 02 de agosto, um sábado de manhã.

Ela se desligou da maternidade e vieram para Aquidauana, onde ele havia construído uma casa de material, avarandada, para recebê-la.

A par de suas tarefas quotidianas de dona de casa, começou ao que chamavam a atender partos, nunca cobrando pelos mais de 1000 que fez. Por esses e outros feitos, recebeu o título de cidadã aquidauanense, por indicação do vereador Eulálio Abel Barbosa.

Carminha sempre se entregou por inteiro a tudo o que fez, hoje já com certas limitações naturais. Bordava, fazia flores, crochê, pintura e muitas outras artes.fazia pastéis que ficaram famosos no bar do Quelho e as linguiças, mal davam para os clientes. Religiosa, era do apostolado da oração e, quando festeira, por certo se esmerava na celebração do mês do sagrado centenário não é todo dia

Casa com terreno amplo, tinha um famoso jardim-pomar, onde algumas pessoas vinham até meditar. Fazia grandes canteiros de flores e plantas ornamentais ao redor das frutíferas, medida sábia para regar todas.

Compraram uma fazenda e o marido começou a implantar uma usina de pinga, como a que já tinha em Aquidauana, com uma fábrica. Dedicou-se à fazenda com muito esforço e pouco capital. Dívidas, hipotecas o levaram a passar 2 anos com doença cardíaca na famosa Clínica São Vicente. Os recursos acabaram e ele veio a falecer em Aquidauana, aos 19 de setembro de 1964.

Carminha, aguerrida, uma sobrevivente, a tudo enfrentou com galhardia e trabalho. Nunca esmoreceu. Trabalhava de sol a sol para se livrar do endividamento.
Vendia Avon, fazia doces e picles, crochê, tricô, mala nas costas, como mascate. Muito criativa, fazia e vendia pequenos objetos da moda, como os muguis e as famosas capangas, pequenas bolsas de mão com uma alcinha, portadas muito pelos homens de então.

Entre uma sacolada e outra, dedicava-se a transformar os grandes depósitos da antiga fábrica de pinga em casas que já ia alugando, que já ia alugando mesmo sob a forma de quartos e banheiros improvisados.

Paralelamente, também, ia reconstruindo sua casa de morada, cujas varandas ruiram, pela má qualidade do trabalho. Obstinada em seus objetivos de melhorar de vida, a isso se dedicava noite e dia. Tem muito a agradecer a muitas pessoas, em particular a aquelas que a ajudaram a levantar a hipoteca dos bens, comprando por vezes materiais de que não necessitavam mas por reconhecer o valor de sua luta. Destaca os irmãos dr.Renato e Fernando Luiz Alves Ribeiro, o Tico.

São muitas memórias de fatos e de gentes. As boas, ambalam a alma. As ruins, são para esquecer.

Como dizem os pantaneiros, “não é todo dia que lobinho caga na estrada…”. Afinal, 100 anos não é para todo dia, né Carminha. Parabéns, guerreira. Vencedora. Sempre de rebenque erguido.

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